Relações humanas são das coisas mais difíceis de definir.
Foi este o pensamento com que ficaste, depois de reler as cartas dele. Já passou tanto tempo, mas parece que foi ontem que ele te disse aquele “não” mais cobarde que alguma vez ouviste dito por alguém.
Hoje estás naqueles dias que só te apetece chorar, minha menina. O disco a tocar de Madredeus ainda te põe mais melancólica, do que já te encontras. Apesar de estar um dia bonito lá fora, (afinal começou a primavera) a tua caminha ainda por fazer é uma tentação irresistível. Vestes o pijama e deitas-te a pensar nele.
Mas já não é o ele anterior. É um “ele” comum. Um “ele” que engloba todos os homens no mundo. Cada vez que pensas nisto, te tornas mais feminista e uma arma pronta a disparar. Já não aguentas a pressão de “eles” te fazerem infeliz. São uns seres desprezíveis. Mas não conseguimos passar sem eles.
Levantas-te a rir dos teus pensamentos. Oh, tontinha, tens que ser superior a isso. És muito melhor que tudo. Nunca ninguém te há-de merecer. Serás sempre superior a tudo e todos, mas por vezes deixas-te levar e iludes-te sem piedade. Mas no depois, quando acordas, retomas a consciência e vês que ninguém merece esse teu esforço. És afinal, uma mulher de armas. És bonita, inteligente, culta e trabalhadora. Já viveste muito, mas sabes que essas experiências nunca serão em vão. Cada dia te torna mais forte para enfrentares o mundo com um olhar altivo e sabedor.
És jovem. És experiente. Mas és também imatura. Debates-te todos os dias com esse eterno dilema da vida. Não sabes para o que vives. Não sabes para quem vives. Somente para ti. Já pensaste em ter filhos, assim davas um sentido à vida. Mas já pensaste em desistir de viver. Já puseste todas as hipóteses sustentáveis. Pelo menos aquelas que te parecem mais viáveis. Já ponderaste deixar de estudar, abandonar tudo e correr o mundo. Até veio-te há ideia parar, e começares a trabalhar. Mas rapidamente essas ideias se esbatem, já que desde os teus 9 anos, quando realmente tiveste a percepção da crueldade do que os homens e mulheres são capazes, sempre disseste que serias uma juíza pronta a defender aquelas crianças que sofreram como tu.
Mas viver a idade que vives é difícil. É a idade mais incongruente da vida. É quando tudo te parece errado. É quando procuras um ideal e um bem para tudo. É quando decides ir em busca da perfeição. É quando te iludes que tens a força do mundo e mais além para lutar por uma utopia que só tu sabes qual é, diferente de tudo e de todos, que só no teu coração existe, que só tu sabes defini-la dentro da tua cabeça, quando tens todo o mundo ai presente e todas as ideias lutam em pequenos turbilhões, que te deixam exausta e cansada. Afinal, a luta é difícil. Não tem fim. Não tem principio. Não tem aliados. Não tem inimigos. É nada.
Hoje é dia do pai. 19 de Março. É um dia que te diz muito e nada. Lembras-te de fazer bonecos na escola sempre com muito tempo de antecedência, para levares para casa e ofereceres ao pai, que ficava contente. Mas agora não te diz quase nada. Ele é ausente. Não o podes abraçar. Não podes abraçar ninguém. Não tens ninguém para abraçar. Mulheres ou homens reparaste agora, que estás sozinha. Não tens ninguém. És sozinha. Sentes-te sozinha. Vives rodeada de gente mas sentes a solidão mais presente do que alguma vez pensaste senti-la. Não podes afirmar que essa gente não te ame. Não, eles amam-te. Tu, não te sentes amada como querias. Talvez, como necessites e como precisas. Mas vives tentando remediar isso que pensas que é algo inferior e sem grande relevo, tentando não mostrar esse medo que te atormenta e demonstras que és forte e imbatível. No fundo, vives como um ser duplo.
Não. Isso não é verdadeiro. Eu não sou um ser duplo. Sou somente um “eu”. Alguém que não quer ver maldade em ninguém e que vive tentando ver facilidades em tudo, pois a vida é para ser vivida com alegria. Ris-te. Fazes um sorriso daqueles em que mostras o aparelho com elásticos azuis, mas no fundo sabes, que isso é uma faceta.
Tens frio. De repente ficaste a tremer. Será que é porque escreves sobre um tema que te dá pavor, onde falas do teu intimo. Onde escreves sobre a tua essência, pondo-a no exterior, onde qualquer pessoa pode lê-la? Talvez…
Fazes “torcidas”, mastigas a pastilha, olhas para o telemóvel. Tentas esquecer isto. Olhar de maneira diferente, mas não consegues parar. Os óculos fazem-te doer atrás da orelha. Uma dor fraca, mas lenta, dolorosa, que se vai tornando crónica. Não te apetece ir por as lentes. Hoje não as puseste. Também não as vais por agora, no fim do dia.
Não sabes o que queres. Acendeste o candeeiro. Olhas para um cd do Rui Veloso, pois já estás cansada de ouvir Madredeus. Mas não te apetece levantar. Hoje estás bonita. Sentes-te bonita. Mas só para ti? E voltaste àquele tema. Perguntas o porque, a resposta para todas as tuas perguntas que pões em cada segundo que passa nessa tua cabecinha. Não tens descanso. Até os sonhos são pesadelos. As noites são uma tormenta. Custa-te adormecer e levantas-te cansada. Anseias por uma pausa. Um corte com esta realidade que te amedronta tanto. Será da idade? Será que tenho que passar por isto? Será que irei viver sem ter este mundo em convulsões dentro da minha cabeça?
Apetece-te ler, apetece-te ler História, apetece-te ouvir musica, escrever, comer, dormir, chorar, gritar, não fazer nada. Ficar a olhar para o céu eternamente à espera. A uma eterna espera. Sim, eterna, porque sabes que nunca ninguém te irá responder ao que procuras.
Tentas viver a pensar no futuro. A tentar lutar por esse futuro. Esse futuro onde esperas alcançar a glória que tanto desejas. “Esse futuro que há-de vir” onde nada nem ninguém te deterá. Onde te tornarás naquilo que sempre sonhaste. Mas o que sempre sonhaste? Não sabes? Não consegues explicar.
Por vezes pensas que não sabes nada. Que não interessa aquilo que pensas, aquilo que sabes. Vêem-te como alguém que não tem nenhuma importância. Que aquilo que diz não pode ser levado a sério. És dependente de todos. Não consegues viver sozinha. Não tens dinheiro. Não tens nada. Só te tens a ti. Será que isso chega?
Alguns dizem que sim. Que só tu sabes aquilo que és e o que vales. Mas eu valerei alguma coisa? Serei boa nalguma coisa? Talvez. Afinal, todos nós nascemos com alguma coisa na qual nos evidenciamos. A verdade é que ainda não descobri essa faceta na qual eu me evidencio. Ainda ando à procura de mim. Daquilo que eu sou. Daquilo que eu quero. Do que gosto. Pelo que eu quero lutar.
Há gente que anda em busca dessas respostas a vida toda. Espero que isso a mim não me aconteça. Quero saber que morri mas que soube para o que vivi. Quero morrer velhinha, rodeada de netos, que me chamem de Avó Laura. Quero que me amem, como eu os amarei e lhes darei presentes e atenção. Atenção de avó. Quando temos todo o tempo do mundo. Quando não temos já que lutar por nada, pois sentimo-nos satisfeitos e felizes com a vida. Quero dormir abraçada a alguém que me ame. Quero viver com alguém ao meu lado, alguém esse que seja bom, que seja amigo, que me acompanhe durante o resto da vida, nesse percurso silencioso que é o envelhecer.
Todos sabemos que a vida não é assim tão linear. Desejar esses fins, talvez seja o auge da felicidade, para alguns. Mas as coisas não são como se quer. Quando se pensa que tudo está bem, quando o chão se sente por baixo dos nossos pés e transmite segurança, é quando por vezes se abre um precipício e tudo o que parecia estar certo torna-se errado. Não há certezas. É tudo o que podes compreender. Mesmo a própria certeza é incerta. Tudo na vida são dilemas. São teorias que não passam disso mesmo: de teorias. Que podem dar certo, até vir alguém demonstrar o quanto estavam erradas e assim sucessivamente.
Por mais que penses que estejas correcta, por mais que sintas que ages com preceito, pode haver sempre algo que te faz recuar. Que te diz que estás mal. Mesmo quando a tua consciência nada diz de errado, há sempre alguém que se pode magoar, há sempre alguma coisa que se pode partir ou destruir. Por mais que se viva, certezas e verdadeiras realidades nunca existirão. Disso podes ter a certeza dentro da incerteza.
O interessante da vida, embora muitas vezes se torne dramático é viver na incerteza. A inexactidão do futuro. É disso que tens medo. De não teres o poder para que as coisas dêem certo. Para que nada dê errado. Para que tudo dê certo.
Oh, que ilusão a tua, minha menina. Ainda hoje leste no jornal uma frase que te fez pensar “grande paradoxo: o homem moderno imergiu no prazer, e no entanto é infeliz”. Como é verdade. Como resume aquilo que pensas, aquilo que sentes. Tens, ou pensas que tens, tudo aquilo que queres mas no fim, sentes-te infeliz. O paradoxo da idade moderna. Cada vez mais o homem tem todo o prazer que o mundo lhe consegue dar, mas a sua insatisfação é plena.
Uma travessia...por vezes fácil, outras vezes difícil. Um deserto, onde se tenta desesperadamente encontrar um oásis para ai permanecer, pelo menos na triste ilusão de ser feliz.
maio 29, 2004
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