Ave da Esperança
Passo a noite a sonhar o amanhecer.
Sou a ave da esperança.
Pássaro triste que na luz do sol
Aquece as alegrias do futuro,
O tempo que há-de vir sem este muro
De silêncio e negrura.
A cercá-lo de medo e de espessura
Maciça e tumular;
O tempo que há-de vir – esse desejo
Com asas, primavera e liberdade.
Tempo que ninguém há-de
Corromper
Com palavras de amor, que são a morte
Antes de se morrer.
Só tenho pena de não ter sido eu a escrever este poema. Mas Miguel Torga escreveu-o. Talvez por nestas poucas palavras caracterizar o meu intimo tão perfeitamente, é o meu poeta de eleição. Se houvesse uma enciclopédia para a minha pessoa, no prefácio estaria este poema. Ou então seria uma espécie de resumo.
Palavras de amor…. O maior veneno que existe. Mata-nos. Leva-nos à loucura. À desilusão. À existência sem sentido. São palavras simples que nos contorcem, que nos moldam todos os sentimentos interiores, que são profanadas por ai sem qualquer significado e valor. Crucificam palavras belas ditas em possíveis situações especiais sem ter medo, como se a importância que lhes é revestida não interessasse para nada. Já ninguém espera para dizer “gosto de ti” ou algo mais especial… usam-nas logo, como de um brinquedo se tratasse. Com as palavras não se brinca. Sejam ouvidas ou ditas, elas ficam sempre na memória. Badalando a cada sinal ou gesto menos normal. Olha-se ao redor e estragam-se as palavras, já ninguém ama somente por amar.
A violência e a agressão fazem parte do dia a dia dos novos casais. Namora-se com alguém e há mais discussões que abraços. Grita-se com o outro, chama-se nomes à pessoa da qual se gosta. Onde está o afecto, o carinho?
Isto é inaceitável, mas é o pão de cada dia. Faz-me confusão ver amigos que namoram e andam sempre a discutir, humilham-se, gritam, e que no final para pedir desculpa quando têm consciência que erraram ou nem isso têm, dizem “amo-te muito” e pronto, fica tudo bem.
As pessoas já não têm respeito por elas próprias nem por ninguém. A espécie humana decaiu num tal grau de vergonha, que já não há salvação. As amizades são por conveniência, os casamentos por dinheiro e a compaixão é pela herança. Tornamo-nos tão frios e tão cruéis que ofendemos e magoamos a toda a hora, não damos conta do que dizemos, das acções que temos, nem do que pensamos.
Talvez tenha criado uma barreira como Torga. Um muro. Uma muralha. Não sei. Só gostar já não importa. Já não interessa. É preciso mais. É preciso saber gostar e já ninguém sabe. Não nos compadecemos com o próximo e olhamos de cima para a indiferença prevalecer. “Gostar” não é só andar aos namoricos e beijinhos mas é mais. É haver preocupação, ver os defeitos e o que é bom, rir quando tem piada e chamar a atenção quando está mal, é respeitar, é lutar, é conversar, ouvir, e fazer entender. É pensar num futuro. É ter planos. Não há relação perfeita, mas há uma boa relação. E isso já há pouco.
Chamem medo a estas minhas palavras que eu não me importo. Quem não tem medo de sofrer? Eu tenho. As pessoas já não são sinceras. É isso que me revolta. Às vezes a vida mais parece que não existe. Mas sonho. Continuo a tentar aquecer-me ao sol, para num futuro não magoar nem sofrer. Sim, porque nesse futuro, onde serei esse tal pássaro, já não terei a minha muralha e já não estarei fechada e nem terei medo de voar.
Uma travessia...por vezes fácil, outras vezes difícil. Um deserto, onde se tenta desesperadamente encontrar um oásis para ai permanecer, pelo menos na triste ilusão de ser feliz.
fevereiro 16, 2004
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